domingo, 8 de agosto de 2010

Kalil* e o deserto

(o nome do personagem é uma homenagem ao fabuloso escritor e artista Kahlil Gibran)



1ª parte


Kalil abriu os olhos e o sol do deserto estava no meio do céu.

Ofuscada a visão, cerrou as pálpebras, virou o rosto um pouco para o lado, a fim de poder novamente abrir os olhos em outra direção. Neste momento, percebeu o calor queimando-lhe a pele nua. Assustou-se porque notou que estava completamente nu, deitado na areia que começava a esquentar.

Atordoado e confuso, nada lhe ocorreu por breves instantes. Sendo que o raciocínio não formava idéia alguma, o instinto de sobrevivência tomou conta. Apenas uma vastidão infinita preenchia o horizonte vazio por todos os lados que olhava, monotonia  apenas quebrada por leves ventos que jogavam para o alto porções de areia, não deixando o deserto ser um quadro estático. Teve que se levantar, e notou que nem pedras havia naquela paisagem. Estava completamente indefeso e perguntou a si mesmo se era possível manter-se vivo naquelas condições.

Agachou-se e sentiu, que embora a areia quente queimasse as plantas dos pés, ainda era suportável.  Posso sair caminhando até encontrar alguém que possa me ajudar. Foi este o seu primeiro impulso. Atravessou algumas dunas e a paisagem não se modificava. Deduziu que talvez estivesse no centro de um grande deserto. Estava mais perplexo que desesperado.

Kalil ponderou: - Talvez tenha força para caminhar por um dia inteiro, e meu corpo suporte a ausência de água e comida por algum período, mas eu preciso pelo menos saber para onde caminhar. Não adiantaria caminhar a esmo, seria o mesmo que andar em círculos, e não havia indicação, nenhuma referência, uma vez que no deserto, a poeira e o vento causa-nos vertigem e todos os lugares parecem exatamente iguais.

Ele poderia gritar, praguejar, falar aos quatro ventos do seu infortúnio, levantar a voz para o céu, clamar por piedade, se desesperar, chorar ou apenas fazer uma oração.

Mas não lhe ocorreu fazer nenhuma destas coisas.

Kalil aceitou seu destino calado, pois naquele momento qualquer coisa seria inútil. Quando findou-se a tarde deste dia e a noite se aproximava, ele começou a entender o grande vazio que representava estar só no meio de um deserto e o quanto estava indefeso e inacessível num lugar tão inóspito. Tentou ao menos reconhecer a beleza do entardecer, nas tonalidades avermelhadas que tomavam conta do horizonte. Mas essa beleza também não encheu seus olhos.

Milagrosamente ele havia escapado do calor escaldante do dia, mas quando a noite começou a soprar os ventos frios, pela primeira vez neste dia pensou na morte. Será muita sorte, se pela manhã ainda estiver vivo, pensou. E à medida que o tempo esfriava, ele se exercitava para não congelar, mas chegou um momento em que exausto, encolheu-se para tentar dormir um pouco e algo o reconfortou por um breve tempo antes de adormecer. Pensou que tudo aquilo talvez não fosse mais que um longo pesadelo, bem real, mas apenas um pesadelo. Era só dormir, e quando acordasse tudo estaria bem de novo.

E dormiu sonhando acordar em casa novamente.


2ª parte

Kalil abriu os olhos e o sol do deserto estava no meio do céu.

Uma leve decepção tomou conta de sua alma. Mas estar vivo já era um consolo. Notou que sua pele não estava ressecada pelo frio ou pelo calor da exposição ao dia anterior. Ainda se sentia com forças para continuar. Mas ao contrário do primeiro dia, olhou fixamente durante muito tempo o sol, como quisesse ficar cego. Ora, estar no deserto, nu e sozinho é o mesmo que caminhar nas trevas. A visão não serve mesmo para alguma coisa aqui. Havia uma ponta de ressentimento nesta constatação. Mas quando olhou para as dunas no horizonte sua visão não estava queimada, e ocorreu-lhe que o sol que olhara fixamente poderia não ser exatamente o sol.

Kalil mais uma vez ponderou: - Passei o dia de ontem tentando encontrar uma forma de sair deste lugar, na minha doce ilusão, achei por bem esperar que tudo isso fosse apenas um pesadelo. Raciocinei como um indivíduo frente a natureza do momento que se apresentou e não fiz o questionamento correto: como cheguei até aqui? Como era minha vida até anteontem?

Tentou se lembrar se esforçando ao máximo, e uma imagem  rápida de verdes terras onde passara sua infância veio à sua mente. Subitamente a areia do deserto se esverdeou por menos de um segundo. Kalil se assustou. Olhou novamente fixo para o sol em busca de mais algum sinal. Mas a paisagem não mudou.

Sentou-se na areia e olhou seu corpo nu. Pensou como poderia estar e como chegara até ali. Até se esqueceu que um dia teve roupas, embora isso nem o chegara a perturbar. Começara a lhe parecer que tinha sido sempre assim. Notou que aquela situação não o afetava tanto, quanto no dia anterior. O deserto imensurável a se desenhar à sua frente, infinito e impassível, quanto mais tentasse atravessá-lo.

Ao entardecer Kalil olhou o horizonte avermelhado e lembrou do cheiro de terra molhada. Fechou os olhos e quis sentir este cheiro, mas não encontrava em sua mente aonde ele estava. Compreendeu que havia algo realmente muito errado, e acometeu-lhe uma tristeza vindo de um vazio monstruoso que fizeram brotar lágrimas de seus olhos fechados. Ao tocarem o chão as lágrimas evaporaram e Kalil sentiu o cheiro da terra molhar.

Ainda antes de anoitecer, ouviu alguém chamar seu nome. Chamaram por mais de três vezes. Parecia que fazia muitos anos que ninguém o chamava. Kalil demorou a reconhecer o próprio nome pronunciado em um outro idioma.




Osmi Vieira - Agosto 2010

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